Seguimos empurrados para frente: o Brasil e o bicentenário da América Latina

"O poder da classe dominante brasileira é sustentado pelo tripé “monopólio da terra + controle dos meios de comunicação + poder político eleitoral”



31/01/2011

Rafael Litvin Villas Bôas


Nos anos de 2014 e 2016 o Brasil sediará respectivamente a Copa do Mundo de futebol masculino e as Olimpíadas, os dois maiores eventos esportivos do planeta. Para muita gente, essas duas conquistas são provas incontestáveis de que o Brasil chegou lá, ao concerto das nações desenvolvidas.



Um dos exemplos emblemáticos da formalização desse discurso é o vídeo publicitário de um banco brasileiro chamado Bradesco, que tem na voz narrativa o sistema financeiro transnacional dando as boas novas aos seus clientes e investidores. Com a trilha sonora da melodia da canção “Aquarela do Brasil” e o cenário de um grande estádio de futebol cujo centro se transforma nas imagens das conquistas anunciadas, aplaudidas por eufórica torcida de pessoas miscigenadas, diz o narrador: “O Brasil é mais do que o país do futebol. É o país da agricultura e pecuária. Onde o Bradesco tem presença, há mais de sessenta anos financiando produtores de todos os tamanhos. (…) É o país da diversidade e igualdade, da iniciativa privada em equilíbrio com o setor público. (…) Esse não é mais um país do futuro. Hoje, no mundo, o Brasil é presença. E presença no Brasil é Bradesco”3. Sintomático: o país que supostamente ascendeu é o do mercado emergente, e não o do povo integrado via um projeto de nação bem sucedido.



Entretanto, o orgulho nacional não deixou de conviver com a frustração e ceticismo decorrentes da sensação de que nem tudo se move para frente, ou, de que a contra-face do progresso alardeado pela publicidade é o país com o maior índice de concentração de terras do planeta, e com um dos maiores índices de desigualdade social do mundo. O confronto do orgulho sustentado por expectativas lançadas ao futuro com a realidade de nossa condição periférica e subdesenvolvida é dilacerante, e por se tratar de um enclave típico da condição colonial – miragem na metrópole e âncora na super exploração – torna-se matéria de interesse para reflexão sobre a posição brasileira no bicentenário da América Latina.



Dois mitos sobre terra e raça foram urgidos para escamotear a brutal violência do processo civilizatório brasileiro. A dimensão continental do território brasileiro é representada como um dos grandes marcos de nossa “pátria grande”, indício do caminho promissor que a “potência do sul” teria a percorrer, esperava-se em médio prazo, para sair da condição de nação periférica, marcada pela colonização e escravidão, e galgar posição louvável no concerto das nações. E no que tange à raça, a colonização portuguesa construiu por aqui o que foi nominado posteriormente (século XX) como mito da democracia racial, uma aposta em que a integração entre brancos europeus, negros africanos e índios americanos poderia no futuro se consolidar como a singularidade brasileira. Nação miscigenada e território integrado: duas bandeiras da classe dominante introjetadas pelo conjunto da população brasileira, mediante muito investimento publicitário e campanhas de propaganda governamental.



O outro viés da estória é desconhecido pela maior parte da população brasileira: o território integrado, para muito além do mérito de nossos diplomatas, foi conseqüência de um acordo entre as elites brancas escravocratas para evitar que, com a separação dos territórios em pequenos países, fosse facilitada uma ação de insurgência negra em larga escala, potencialmente revolucionária. Como a luta dos quilombos – a resistência de mais de um século do quilombo de Palmares é a principal referência– e a influência que o processo revolucionário de emancipação e independência levado adiante pelos negros do Haiti (1804) exercia sobre a população negra escrava brasileira. A elite branca nacional padecia, segundo expressão de Clóvis Moura4 de síndrome do pânico.



Essa fobia dos brancos da elite em relação à população negra brasileira é uma das marcas de um processo controverso sustentado pelo desajuste estrutural, porém funcional, entre liberalismo e escravidão, que o país não conseguiu superar, e por isso permanece cindido. As rondas policiais de diversos estados brasileiros utilizam a expressão “elemento cor padrão” para designar pessoas negras que aos olhos da polícia são suspeitas por conta de sua cor: no argumento racista, a cor da marginalidade é negra. Luís Mir, médico e historiador brasileiro constatou que a maioria das mortes de jovens negros oficialmente registradas pela polícia como “conflito armado com a polícia” são na verdade execuções sumárias, com tiros à queima roupa, pelas costas, de cima para baixo, o que indica estar a vítima ajoelhada. Diante dos dados estarrecedores de genocídio da população negra brasileira, com respaldo e agência das forças públicas de segurança, Mir cunhou a expressão “guerra civil” 5para interpretar o estágio de barbárie e cisão em que nos encontramos.



A universidade pública brasileira, respaldada pela ideologia do mérito, é um dos principais espaços de reprodução da elite branca dominante. A diferença do caso brasileiro para os demais países da América Latina, em relação ao tempo de existência de universidades em territórios colonizados é fator decisivo para comparação entre os índices de acesso à educação superior. Enquanto alguns países, ainda como colônias, receberam as primeiras universidades no século XVI, o Brasil só veio ter universidade propriamente na terceira década do século XX, com a fundação da Universidade de São Paulo. Para se ter idéia da gravidade do problema, enquanto Cuba tem 69 universidades para uma população de 11 milhões, o Brasil tem cerca de 59 para uma população de mais de 190 milhões de pessoas. Enquanto Bolívia, Venezuela e Cuba zeraram a taxa de analfabetismo em seus territórios, o Brasil conta com cerca de 14 milhões de analfabetos, e mais de 20 milhões de analfabetos funcionais. Há mais analfabetos no Brasil do que a população total de muitos países da América do Sul e Central. Isso para não falarmos da precarização da qualidade do ensino, da submissão à padrões de produtividade que promovem apenas carreiras solo em ambiente em que o trabalho coletivo, os vínculos com a sociedade, deveriam ser mais incentivados do que as fortes parcerias com o mercado.



Não se faz hoje associação de causa e conseqüência diante do fato de sermos o país recordista na concentração de terras (46% das terras nas mãos de 1% de proprietários), o último a abolir a escravidão, e termos a maioria da população negra em condição de pobreza. O país do mercado emergente é o mesmo que mantém a base arcaica de produção da economia exportadora de soja, carne, algodão, milho, e mais recentemente, de telenovelas. Exportamos comida e ficção enquanto parte de nossa população passa fome e permanece expropriada dos meios de produção cultural.



O poder da classe dominante brasileira é sustentado pelo tripé “monopólio da terra + controle dos meios de comunicação + poder político eleitoral”. Latifúndio, abismo social marcado por forte segregação racial e monopólio dos meios de comunicação de massa são problemas relacionados, constituintes e mantenedores da desigualdade social brasileira. Cabe destacar a função de verniz modernizante/dinamizador que o capital financeiro internacional passou a conferir na aparência à esta estrutura arcaica, nas últimas décadas.



Em época de comemoração de bonança mercantil brasileira, parece ser contrasenso, ou anti-clímax lembrar de nosso legado escravocrata e colonial, que a despeito dos avanços, nunca nos abandonou. Apostamos que o movimento inverso, de mergulharmos em nossas contradições, não como ato de martirização, mas como providência contra nossa própria mercantilização, em nome de nossa memória, para que não nos esqueçamos de nós mesmos, e possamos a partir do passado projetar o futuro, pode ser mais produtivo para todos. Isso depende da construção e sustentação em larga escala de um projeto contra-hegemônico, que mostre materialmente que há alternativas de reprodução de nossa existência menos destrutivas para a natureza, mais igualitárias, mais democráticas estruturalmente. Isso depende da luta, da convergência entre produção de conhecimentos pautados por essas contradições vinculados às demandas das classes populares. Nenhum rumo automático, destrutivo ou construtivo, vai nos levar a isso.


Rafael Vilaboas é do setor de cultura do MST e professor da UnB.

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